02 abril, 2008

agnus dei?





1. O exercício não é fácil e uma vez mais, circunscreve-se a uma simples abstracção. Parte da ideia que vem sendo sucessivamente aqui promovida, de que o futuro importa um pouco mais da nossa substância individual e sobretudo, dos julgamentos e juízos de que a grande maioria é capaz, das referências morais e de valores que as sustentam, sejam elas quais sejam, isto por contraposição ao abandono do exercício de tais faculdades , em favor do Estado.

2. Parte-se de uma constatação histórica: a de que o Estado, quando ausente ou incapaz de ser expressão e concretização de opções morais aceites como justas, pela maioria dos indivíduos que o compõem, passa a ser ele mesmo veículo da arbitrariedade. Constatações históricas de tais circunstâncias abundam e não vale a pena aqui nomeá-las. Em todas, sem particular excepção, o totalitarismo e a opressão acontece porque num dado momento, por inércia ou coacção, os indivíduos deixaram de ter mão e de poder conformar o que deve ser a actuação do Estado nas suas diferentes vertentes, e esta – fruto de um estreitamento de fundamentos e objectivos – autonomizou-se relativamente a eles (indivíduos), passando a impor sem qualquer espécie de tolerância, um quadro irrestrito de opções e de condicionamentos comportamentais, que não admite senão a submissão. Nessas circunstâncias, o Estado abdica do indivíduo a favor dele próprio e da sobrevivência de tudo aquilo em que se desdobra.

3. Por isso, toda a sociedade Justa deve ser, no sentido que vem de ser exposto, uma sociedade individualizada, uma comunidade política capaz de dar expressão a sentimentos ou juízos de valor individualmente referenciados e que um tal espaço, ou momento de valoração, lhe seja orgânico, ou seja, torna-se necessário que tais momentos valorativos e individuais sejam prática banalizada ou relativamente comum da vida em sociedade. De algum modo, esta será tanto mais evoluída politicamente, economicamente ou culturalmente, quanto mais espaço propiciar àquela expressão individual e mais habituada esteja, ao seu posterior desenvolvimento institucionalizado.

4. E em que medida todas estas considerações sobre a relação Indivíduo vs. Estado cabem na MEDIAÇÃO de CONFLITOS? Cabem inteiramente. O apelo que faz a mediação aos nossos julgamentos e equilíbrios, à ponderação e à construção de soluções individualizadas e o dispositivo dialéctico e polarizado a partir do qual, soluções de consciência são expressas e materializadas, remete-nos precisamente para aquela necessidade referida no ponto anterior, que qualquer sociedade justa, deve reconhecer e permitir determinações, projecções, assentes exclusivamente em valores e juízos particulares.

5. Ora atenta esta estrutura e este campo aberto de individualismo e de consciência autonomizada, que naturalmente decorre da MEDIAÇÃO DE CONFLITOS, sempre se estranhou o facto de haver sido o Estado quem assumiu, incrementou e presentemente domina, os mecanismos através dos quais aquela MEDIAÇÃO é exercida. De onde se torna manifesto que o Estado, sendo uma babilónia saliente, não pretende largar mão da uniformidade e do monolitismo com que reveste todas aquelas decisões que concretizam uma das suas atribuições fundamentais: o exercício da Justiça.

6. Assim evidente se torna, que o domínio presentemente exercido pelo Estado nesse campo aberto de individualismo que é a mediação, não pode senão significar uma vigilância interessada, no sentido de monotorizar ou mesmo impedir que a Justiça aconteça e possa resultar também, de referências íntimas e de consciência assentes em valores e em enquadramentos morais, que não ganham expressão visível na Lei e suas normas.

7. Daqui poderíamos especular se servem aos propósitos da Mediação e à particular forma em que se desenvolve – enquanto forma de realização de justiça – enquadramentos morais, juízos, valores, que possuem uma dimensão que se encontra além das projecções legais e normativas estatalmente emanadas e que se podem inscrever na intimidade de cada um, naquilo que são as suas convicções profundas e na particular e única mundividência que cada um assume, perante o mundo e os outros: será reconduzível e enquadrável uma particular decisão obtida em sessão de mediação, à humilde substância de um salmo como “Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, miserere nobis”*, ou poderá ser tal decisão pertinente à proclamação racionalista de Kant “Cumpre o teu dever incondicionalmente. Age sempre de tal maneira que a máxima da tua acção possa ser erigida em lei universal”? A psicologia pode de igual modo traduzir e explicar noutra vertente resoluções que aconteçam no âmbito da Mediação e todo um mundo de possibilidades se abriria. Contudo e para já, tal surge demasiadamente complicado para ser por aqui desenvolvido.

* “Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo, tende piedade de nós.”

8. Concluí-se por fim do seguinte modo: de que sempre devemos ter plena consciência das possibilidades que nos estão individualmente abertas e perceber as razões que se escondem nos protagonistas, que assumem perante nós uma diferente natureza e que pretendem connosco disputar o nosso individualismo. Importa sobretudo saber, ou ter a consciência que "cordeiro" pretendemos ser: se aquele de Deus, ou aquele do Estado. Disso resultará mais claro, o empenho ou os sacrifícios que cada um de nós está disposto a protagonizar...


Missa em Si menor BWV 232 de Johann Sebastian Bach, “Agnus Dei”, magnificamente interpretado por Andreas Scholl, contralto, com o Coro Collegium Vocale Gent, sob a direcção de Philippe Herreweghe, em edição discográfica da harmonia mundi s.a. que recomendo em absoluto.

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