16 abril, 2008

E então? Razões de um epitáfio.




Muitas coisas existem cuja razão não compreendemos. Relativamente a elas, expressamos o nosso entusiasmo, o nosso gosto, a imperiosa necessidade de que se façam presentes e muitas vezes – senão na sua maioria – desconhecemos a razão para tanto, o porquê do seu vício e nossa dependência.

Desconheço todas as razões pelas quais gosto de jazz. Algumas seguramente prendem-se com a sua cadência rítmica, a sua envolvência sincopada, a forma como a sua harmonia muitas vezes se expande de um modo sofisticado e cosmopolita, outras vezes, como tudo se reduz à efervescência e à simplicidade pura do swing.

Contudo, uma razão sei pela qual gosto de jazz: o facto de, enquanto conceito musical, permitir um momento de criação e de expressão, que respeita apenas e exclusivamente ao indivíduo enquanto músico. Esse mesmo momento de individualismo musical, de manifestação de sentimento ou sensibilidade, acontece invariavelmente no “solo”, no improviso do instrumentista, apesar de o mesmo dever ocorrer sem que, em momento algum, se perca a noção de interactividade com os restantes músicos que suportam a criação. E em toda esta dialéctica artística há muito de cerebral, mas simultaneamente, ardor e um empenho da paixão.

Exemplo claro disso é “So What” com o quinteto de Miles Davis.

Aquilo que o blog aperguntacircular na sua raiz pretenderia ser, era algo de jazzístico no sentido que vem de ser definido. A expressão individual, a criação dentro de um colectivo. O improviso a partir de um tema previamente definido: a mediação de conflitos. E tal como em “So What”, tudo começou serenamente com a exposição do tema, o seu propósito, ganhando posteriormente corpo e embalo para que a expressão individual do “solo”, os improvisos que procuravam explorar de um modo individual ideias, conceitos, “harmonias” que haviam sido trazidas pelo conjunto de que se fez parte, pudessem acontecer, como aconteceram. Durante este ano, alguns solos de aperguntacircular, pareceram-me relativamente bem conseguidos, outros nem por isso, mas o importante é que no todo, resulte um equilíbrio, uma certa consistência.

Miles Davis, dizia que o mais importante da música eram os seus silêncios, aquilo que musicalmente se designa por pausas. E de todos os silêncios e pausas que podem acontecer num solo, ou improviso, o mais importante deles, é o de saber quando “sair”, quando parar, saber quando introduzir a pausa definitiva, depois do eventual brilhantismo harmónico e da paixão solista.

E é isso que aqui se anuncia, a pausa definitiva, o suprimir dos sons. Por aqui, não existirão mais variações rítmicas ou melódicas a partir de um tema previamente introduzido, a mediação de conflitos. Não serão acrescentadas mais colcheias, ou semi-colcheias individualizadas a algo tão vasto, pois é tempo de perceber a necessidade do silêncio, da pausa, sob pena de fazer destoar e desequilibrar o conjunto. Estas as razões fundamentais, para o presente epitáfio: importa não escabrunhar o que se fez, ainda que isso possa não ter importância nenhuma!

E assim, depois de introduzido o tema, feitas as variações solísticas como base na sua percepção individualizada, eis que tudo converge para um progressivo abandono do conjunto, o sair de cena e o acumular dos silêncios, dos sucessivos intervenientes, até que deles resta um, Paul Chambers, no contrabaixo, que serenamente num arpejo, nos diz o fim.

O tempo é de guardar estes, para semear novos improvisos…



"So What" de Miles Davis, pelo quinteto de Miles Davis, gravado ao vivo em Abril de 1959. Miles Davis (T), John Coltrane (TSx), Paul Chambers (B) Jimmy Cobb (BT) e Wynton Kelly (P).

11 abril, 2008

aperguntacircular wekend lounge



"stolen moments" de oliver nelson, com oliver nelson (sax tenor) eric dolphy (sax alto e flauta), george barrow (sax barítono) bill evans (p), roy haines (bt), freddie hubard (t), paul chambers (b), do álbum "the blues and the abstract truth" editado por impulse records em fevereiro de 1961.

Bom fim-de-semana!

07 abril, 2008

a mediação impossível




jet li vs. donnie yen

"Hero" de zhang yimou, Beijing New Picture Film Co., Outubro de 2002.

the poisoned mondays antidote



"Cosmic Girl" Jamiroquai do álbum "travelling whithout moving" editado por Epic Records em Maio de 1996.

04 abril, 2008

aperguntacircular weekend lounge



"blue in green" de Miles Davis, do álbum "Kind of Blue" editado em Agosto de 1959 por Columbia Records. Miles Davis (tp), Bill Evans (p), Paul Chambers (b), Jimmy Cobb (bt), John Coltrane (sax).

Bom fim-de-semana!

02 abril, 2008

agnus dei?





1. O exercício não é fácil e uma vez mais, circunscreve-se a uma simples abstracção. Parte da ideia que vem sendo sucessivamente aqui promovida, de que o futuro importa um pouco mais da nossa substância individual e sobretudo, dos julgamentos e juízos de que a grande maioria é capaz, das referências morais e de valores que as sustentam, sejam elas quais sejam, isto por contraposição ao abandono do exercício de tais faculdades , em favor do Estado.

2. Parte-se de uma constatação histórica: a de que o Estado, quando ausente ou incapaz de ser expressão e concretização de opções morais aceites como justas, pela maioria dos indivíduos que o compõem, passa a ser ele mesmo veículo da arbitrariedade. Constatações históricas de tais circunstâncias abundam e não vale a pena aqui nomeá-las. Em todas, sem particular excepção, o totalitarismo e a opressão acontece porque num dado momento, por inércia ou coacção, os indivíduos deixaram de ter mão e de poder conformar o que deve ser a actuação do Estado nas suas diferentes vertentes, e esta – fruto de um estreitamento de fundamentos e objectivos – autonomizou-se relativamente a eles (indivíduos), passando a impor sem qualquer espécie de tolerância, um quadro irrestrito de opções e de condicionamentos comportamentais, que não admite senão a submissão. Nessas circunstâncias, o Estado abdica do indivíduo a favor dele próprio e da sobrevivência de tudo aquilo em que se desdobra.

3. Por isso, toda a sociedade Justa deve ser, no sentido que vem de ser exposto, uma sociedade individualizada, uma comunidade política capaz de dar expressão a sentimentos ou juízos de valor individualmente referenciados e que um tal espaço, ou momento de valoração, lhe seja orgânico, ou seja, torna-se necessário que tais momentos valorativos e individuais sejam prática banalizada ou relativamente comum da vida em sociedade. De algum modo, esta será tanto mais evoluída politicamente, economicamente ou culturalmente, quanto mais espaço propiciar àquela expressão individual e mais habituada esteja, ao seu posterior desenvolvimento institucionalizado.

4. E em que medida todas estas considerações sobre a relação Indivíduo vs. Estado cabem na MEDIAÇÃO de CONFLITOS? Cabem inteiramente. O apelo que faz a mediação aos nossos julgamentos e equilíbrios, à ponderação e à construção de soluções individualizadas e o dispositivo dialéctico e polarizado a partir do qual, soluções de consciência são expressas e materializadas, remete-nos precisamente para aquela necessidade referida no ponto anterior, que qualquer sociedade justa, deve reconhecer e permitir determinações, projecções, assentes exclusivamente em valores e juízos particulares.

5. Ora atenta esta estrutura e este campo aberto de individualismo e de consciência autonomizada, que naturalmente decorre da MEDIAÇÃO DE CONFLITOS, sempre se estranhou o facto de haver sido o Estado quem assumiu, incrementou e presentemente domina, os mecanismos através dos quais aquela MEDIAÇÃO é exercida. De onde se torna manifesto que o Estado, sendo uma babilónia saliente, não pretende largar mão da uniformidade e do monolitismo com que reveste todas aquelas decisões que concretizam uma das suas atribuições fundamentais: o exercício da Justiça.

6. Assim evidente se torna, que o domínio presentemente exercido pelo Estado nesse campo aberto de individualismo que é a mediação, não pode senão significar uma vigilância interessada, no sentido de monotorizar ou mesmo impedir que a Justiça aconteça e possa resultar também, de referências íntimas e de consciência assentes em valores e em enquadramentos morais, que não ganham expressão visível na Lei e suas normas.

7. Daqui poderíamos especular se servem aos propósitos da Mediação e à particular forma em que se desenvolve – enquanto forma de realização de justiça – enquadramentos morais, juízos, valores, que possuem uma dimensão que se encontra além das projecções legais e normativas estatalmente emanadas e que se podem inscrever na intimidade de cada um, naquilo que são as suas convicções profundas e na particular e única mundividência que cada um assume, perante o mundo e os outros: será reconduzível e enquadrável uma particular decisão obtida em sessão de mediação, à humilde substância de um salmo como “Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, miserere nobis”*, ou poderá ser tal decisão pertinente à proclamação racionalista de Kant “Cumpre o teu dever incondicionalmente. Age sempre de tal maneira que a máxima da tua acção possa ser erigida em lei universal”? A psicologia pode de igual modo traduzir e explicar noutra vertente resoluções que aconteçam no âmbito da Mediação e todo um mundo de possibilidades se abriria. Contudo e para já, tal surge demasiadamente complicado para ser por aqui desenvolvido.

* “Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo, tende piedade de nós.”

8. Concluí-se por fim do seguinte modo: de que sempre devemos ter plena consciência das possibilidades que nos estão individualmente abertas e perceber as razões que se escondem nos protagonistas, que assumem perante nós uma diferente natureza e que pretendem connosco disputar o nosso individualismo. Importa sobretudo saber, ou ter a consciência que "cordeiro" pretendemos ser: se aquele de Deus, ou aquele do Estado. Disso resultará mais claro, o empenho ou os sacrifícios que cada um de nós está disposto a protagonizar...


Missa em Si menor BWV 232 de Johann Sebastian Bach, “Agnus Dei”, magnificamente interpretado por Andreas Scholl, contralto, com o Coro Collegium Vocale Gent, sob a direcção de Philippe Herreweghe, em edição discográfica da harmonia mundi s.a. que recomendo em absoluto.