28 março, 2008

thank God it´s friday




atlanta, georgia, usa

O desconforto corporal despertou-me. Zeloso das condições necessárias aos despertares optimistas, o sono aborrecera-se com aquela luminescência que entretanto se assanhara pelo quarto, perturbando o crescer amordaçado das suas sombras: um reflexo circunspecto na moldura das memórias, o crepúsculo subindo o vinco desconforme das roupas, o silêncio fundo e desenhado dos móveis, antes que tal quietude desarrumada, exposta, sucumbisse por completo, por volta das oito e um quarto sobre o inevitável frenesim citadino. Fora na exacta expectativa dessa normalidade cronológica, que me havia deitado, exausto, sete horas antes.
Quando o meu corpo se sacudiu naquele aborrecimento incómodo, acordando-me – e para muitos, incluindo eu mesmo, isso nunca acontece no exacto momento em que abrimos os olhos – a luz transpirava ofegante das paredes. Efectivamente, algo diverso acontecia no amanhecer do quarto.... Eram sete horas e uma quantidade imprecisa de minutos mais e na manhã persistia ainda pura, a fresca e inocente dureza dos frutos – aquela que a gosto se arranca com os dentes – a que contudo correspondia uma luminosidade difícil, uma incandescência vigorosa, própria já do meio do dia e que a fisiologia do meu corpo, num estremecer, em absoluto rejeitara.
Em Atlanta, cidade de uns quantos milhões, que se estende e se multiplica visível pelo interior de reflexos e espelhos, pusera-se uma manhã temporalmente diversa, desencontrada, sem que coisa alguma se agitasse pelas ruas... A metrópole extensa, quase infinita, acontecia suspensa de si mesma, banhada de luz…
Assentei-me nos pés, aproximando-me da claridade que brilhava intensa junto à janela do quarto e marquei no vidro, a palma da mão. Do meu trigésimo quinto andar, no extremo sul do Georgia Institute of Technology, onde convergiam a Spring Street e o segmento nascente da North Avenue, percebia bem a esquadria apertada das ruas e os quarteirões a norte do Centennial Olympic Park, que partem da Alexander Street, tendo por limite no seu estremo nascente, o Hardy Ivy Park e a Peachtree Street. É por ali que se arremessam ao início do dia, executivos e quadros técnicos saídos da ligação alcatroada ao subúrbio, às vivendas afogadas em folha caduca e erigidas em lugares bem mais pacíficos e chilreantes. É sempre por aí que se semeia e alastra a efervescência dedicada dos seus dias, o seu fervor e empenho empresarial, que posterior e inexoravelmente, alavanca toda a cidade.
Hoje, porém, a estas horas e por aquelas paragens, em tudo penetrava a ausência e a paralisia. Nada nem ninguém constrangia outrem, ninguém dificultava ou obstruía. As ruas permaneciam ruas, sublinhadas na sua fisionomia rectilínea pelo bordejamento fresco dos plátanos, nuas das coisas e de pessoas, nelas alvoraçando apenas os pássaros, résteas pulsantes de uma natureza já de si exígua, em voos tão imprecisos quanto estúpidos, para entretenimento solitário da Primavera…
E fora talvez acreditando no meu próprio espanto, nesse crescer incrédulo de se tornar suspenso o magma de que depende o nome cidade – ou simplesmente porque era ainda mais intenso aquele crescer da luz – que melódicamente recordei as palavras de Scott Weilland, escrevendo “Atlanta”,

“She lives by the wall,
and waits at the door,
She walks in the sun, to me “.

Perguntei-me se partilhando amantes, enganando gordurosos maridos, espancadas as mulheres ou futilmente maquilhando-se de jóias, toda a carne e todo o metal - sobre o qual se ergue a circunstância contemporânea dita Atlanta - se havia nessa manhã prostrado e comovido, fulminada de uma atroz pequenez, na esperança que um bem-dito milagre surgisse daquele inaguardado ímpeto de luz, expiando-nos das mentiras que nos trazem tão pesada, a breve existência.
Dera-se a cidade conta da frágil contingência do aglomerado que nela existe? Dera-se ela conta do mal e do bem, da força e da doença, do fogo, da água, dos velhos e novos, dos perfeitos e do estropiamento dos rejeitados? Constatara numa súbita atenção, a profunda sabedoria de uns e a repugnante ignorância de todos os outros? Dera-se conta da ambição e da cobiça, do choro, do riso, da dor ou júblilo ou do despojamento, que não somos já capazes de suportar? E por entre esse demasiado lixo e a persistente pouca virtude, dera-se enfim conta daquela trémula justaposição de almas, que convergindo no ínfimo de seus corações, jurava no medo e na fúria, um amor eterno, quando tudo o que acima delas avança é agressivo e pontiagudo?
A minha mão ficara marcada onde antes observava uma natureza morta. Esperei que da moldura desse instalado silêncio surgisse, no pormenor, um arrependimento. Esperei... mas a espera era a esperança descrente em si mesma. Ao longe, adensava-se por fim o retomar um tanto ou quanto tardio da normalidade, a voragem irreversível de todas as coisas que nos prendem e nos tornam, pela maior parte do tempo, entidades invisíveis a nós mesmos.
Os pássaros, assustados, fugiram.
Melhor era que no banho me visse livre desta difícil persistência do sonho. Em Atlanta, já nada existe por quem valha a pena o interesse de um gesto, um quadrado puro no coração, pois nada se sobressalta ou se angustia pela ausência, pela interminável duração do dia, antes que o beijo do reencontro por inteiro nos restabeleça. Há quem se queira ou se ame? Há quem simplesmente espere e lhe cause dor o insuportável largar da mão, por todo um resto de dia?
Esfreguei pelo corpo a higiene perfumada de uma barra de sabão, a espuma da barba no contorno do rosto, apaziguei a ardência da gilette com bálsamo hidratante e reparador, vesti-me de Armani e um pouco mais lentamente do que costuma ser habitual, saí... Que nos fulmine a luz e se anuncie aos que persistem amando, que em breve, todos estarão ameaçados de extinção….

Julian Böhm

"Atlanta" por stone temple pilots, do álbum "number four" editado por geffen records em agosto de 1999.

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