1. Toda a questão da sobrevivência é uma questão radical e por norma, quando ninguém realmente com ela se confronta, ou se confunde (quando a ninguém se coloca a questão de sobreviver) ela serve temas meramente especulativos que nos são propostos de múltiplos modos: por exemplo, como séries de televisão que qualificam os seus protagonistas como perdidos, ou como a última esperança de um país assolado por terroristas, ou então como simples escrito, arrazoado, que partindo de certas tendências ou coordenadas, procura antecipar ou a sobrevivência do Estado e dos Tribunais como sistema único de realização da Justiça, ou o seu eventual colapso ante outras modalidades de resolução de conflitos, assentes num julgamento individualmente referido, num acerto entre partes conflituantes.
2. Não deixa de ser estranho que o Estado desconfie desse poder cicatrizante de que cada um de nós é capaz! E não deixa de parecer estranho que a capacidade que muitos de nós têm de, senão de perdoar, pelo menos de absolver, haja sido esquecida. Não deixa de ser profundamente injusto e perturbante para nós mesmos – enquanto seres humanos, conscientes dessa dimensão e desse pode apaziguador – que algures nessa evolução civilizacional, tenhamos deixado, prescindido, da faculdade de absolver, de remir, de desculpar, ou de pelo menos, partir de nós próprios o impulso e a habilidade para ultrapassar o conflito.
3. Não se pretende com isso negar que na grande parte das vezes, ainda que predispostos a uma capacidade de absolvição, tal não seria conseguido senão pela forma tradicional de resolver os conflitos: os Tribunais. A grande questão, aquela que deverá merecer o nosso próprio espanto, é que nos tenhamos acomodado de tal modo e tão facilmente a essa forma unívoca de abordar a conflitualidade e de, com tal conformação, tenhamos abdicado de nós mesmos, daquilo que é a nossa natureza e do que ela é capaz, em favor de um sistema de juízo e de punição que presentemente – atenta a sua dimensão e complexidade – dificilmente é produz e expressa algo que se possa dizer de verdadeiramente justo, porque próximo das convicções ou da sensibilidade de cada um de nós, da vítima ou do agressor.
4. O Estado é um sobrevivente. E é em nome dessa sua sobrevivência, que ele ocupa uma vez mais um espaço eminentemente conexo com a individualidade de cada um: o espaço e o poder que cada um tem de ser ele próprio e de entender-se a si e ao outro, como um veículo através do qual se consiga estabelecer uma qualquer proximidade e com isso, uma capacitação, nomeadamente aquela outra de que há muito abdicamos, a do indulto, a da absolvição do outro por nós mesmos, considerada uma atitude recíproca e valorativamente idêntica naquele a quem indultamos.
5. Numa leitura mais extrema, a interferência do Estado numa matéria potencialmente tão individualizante como é a resolução alternativa de conflitos (enfim, seguindo a leitura que por aqui a este propósito, vem sendo debatida) não visa senão privar-nos dessa mesma capacitação e da sua transposição para uma dimensão civilizacional que dele (Estado) tem sido apanágio exclusivo: a da realização da Justiça.
6. O propósito é partir-nos as pernas, antes que seja tarde. E nós, sobreviveremos?...
"I will survive" - versão do original de gloria gaynor, por Cake, do álbum "fashion nugget" editado por capricorn records, em agosto de 1997.
19 fevereiro, 2008
sobreviveremos
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