13 fevereiro, 2008

where is my mind?


1. Disse o Ministro da Justiça que a inauguração do Sistema de Mediação Penal não correspondia a uma privatização da Justiça. A ideia do Sr. Ministro até pode ser firme, mas no “post” anterior (ver aqui) tentou demonstrar-se como a perspectiva ministerial sobre a mediação penal – e as restantes mediações – é falível. Toda e qualquer mediação, ainda que sustentada numa intervenção do Estado, corresponde no seu âmago, a uma manifestação eminentemente individual e individualizada dos pólos em conflito e nessa mesma medida, a mediação é por essência algo PRIVADO.

2. Daqui extrapolou-se para consequências de ordem mais genérica relacionadas com a necessidade do próprio Estado manter o controlo sobre os mecanismos de aplicação ou de realização de justiça, incluindo aqueles denominados de “alternativos”, lugar em que, manifestamente, os respectivos procedimentos e a justiça que deles resulta não depende de um sistema exterior/heterónomo às partes em conflito e respectivos protagonistas (Ministério Público, Juízes, Advogados, Peritos etc…) mas sim da própria vontade dos conflituantes e do modo como ambos, casuisticamente, constroem uma solução que a eles exclusivamente lhes pareça conforme e equilibrada, em atenção aos respectivos interesses.

3. Desta mesma constatação e da correspectiva necessidade Estatal em manter protagonismo na resolução alternativa de conflitos, descobre-se uma preocupação relacionada com o esvaziamento de princípios sobre os quais todo o Estado moderno e ocidental se erigiu, assente na igualdade de todos perante a Lei (a sua universalidade), o respectivo primado, o princípio da separação de poderes e o reconhecimento da suficiência dos Tribunais e do poder judicial na realização da Justiça – tudo princípios de cariz racionalista – aos quais se devem a natureza eminentemente sistémica e estadual dos tradicionais mecanismos de realização de justiça. Aquela resolução alternativa e a suficiência que nela acontece do indivíduo na composição e sanação do respectivo conflito (a justiça como uma emanação pessoal, na esteira ética e cristã do perdão) são ácido que corre livremente sobre as fundações racionalistas da Lei como único instrumento formalizador e legitimador de toda a Justiça.

4. Daqui conclui-se, que o controlo de um Sistema de Mediação – qualquer que ele seja – pelo Estado, corresponde a um instinto de auto-preservação.

5. Tendo isto dito e concluído, eis senão quando em Inglaterra o Arcebispo de Cantuária, Dr. Rowan Williams, em lição proferida ou a proferir em Universidade (ver aqui) fala sobre a necessidade de abrir espaço na Lei Inglesa à aplicabilidade em contadas circunstâncias da Sharia (sistema legal muçulmano que resulta de interposição da Palavra de Deus e de aspectos relacionados com a vida do Profeta Maomé) nomeadamente a aplicabilidade de alguns dos seus aspectos relacionados com o matrimónio, a relação entre pais e filhos e outros (aspectos esses que expressam de igual modo, uma individualidade cultural) de modo a permitir a respectiva validade jurídica no sistema de justiça Inglês.

6. Ora esta mesma perspectiva a que deu voz do Arcebispo de Cantuária, não corresponde senão e uma vez mais, a um abanão naquela concepção racionalística da Justiça, assente no primado e na universalidade da Lei, como seu factor preponderante. Aquilo a que o Arcebispo de Cantuária apela é ao contrário, um modo casuístico e individualizado de Justiça, não sancionado pela Lei do Estado. Convém sobretudo acentuar o facto de a convocação de particulares elementos da Sharia para uma realização da Justiça (e uma maior coesão social, no entender daquele Anglicano) aconteceria precisamente em estruturas em tudo semelhantes àquelas praticadas na mediação, ou seja, haveria partes em conflito mediadas por alguém próximo da respectiva comunidade, procurando resolver o litígio dentro de um enquadramento ético-cultural determinado pela Sharia, mas ainda dependente da vontade das partes em conflito – de resto, algo já reconhecido à comunidade Judia – e por isso longe da lei e do sistema de justiça (ainda que em Inglaterra este seja diverso do Continental).

7. E no meio de todas estas circunstâncias há um elemento pessoal a registar: o meu. Sendo alguém eminentemente empenhado naquele sistema de Justiça de cariz Estatal e sobretudo dele dependente, não deixo de ver com interesse os desenvolvimentos recentes no campo da resolução alternativa de conflitos e da especulação que os mesmos permitem em termos de perspectiva e de estruturação da conflitualidade. A questão é que a actividade especulativa e a perspectiva prática do curso de mediação me divide hoje a cabeça e algumas vezes começo por notar, que já não sei bem aonde a devo colocar – afinal, aonde pára a minha cabeça?

And you'll ask yourself

Where is my mind ?
Where is my mind ?
Where is my mind ?

Way out in the water
See it swimmin'…


“Where is my mind“ – the Pixies, album “Surfer Rosa” editado por 4AD em Março 1988.

1 comentário:

Célia Nóbrega Reis disse...

Meu querido António,

É sempre um prazer ler as tuas reflexões!