20 setembro, 2007

sobre a conferência imap II

A partir de uma dor no cóxis nas cadeira do vila galé.

As cadeiras no vila galé são as mesmas, sendo as mesmas as referências cinéfilas, as alegorias gráficas a obras e cineastas que se acham penduradas pelas paredes. “Le charme discret de la bougeoisie”, “Cet obscur object du désire, ou “Una mujer sin amor” são aqui os cartazes – Luís Buñel, década de 70 e 50. Nas outras salas serão outros os cartazes, de outros realizadores, estando o fim de tarde calmo, ainda que demasiado quente para o fim estival que deveria ser todo o mês de Setembro. Mas antes o calor que a chuva. Assim prefiro.

Contudo a meio da exposição do conferencista, indivíduo novo e de cabelo curto, surge a sua afirmação: ”… o homem tem o direito á violência!”. Sim, o HOMEM tem o direito ao exercício escatológico, á conduta amoral ou nauseabunda. O Homem tem direito ao crime, á transgressão, à iniquidade, á malfeitoria generalizada. Eu concordei em absoluto, mas a sala estremeceu, de algum modo incrédula e houve quem até confessasse uma certa consternação pela crueza da asserção (começo também a perceber pela queixa emotiva da consternada que isto dos mediadores, é andar quase sempre num certo grau de alvoroço emotivo).

Sim, há o direito ao crime, o direito á crueza, à malfeitoria. E para percebermos como tais direitos são igualmente fundamentais, basta pensarmos em todas aquelas circunstâncias da história nas quais se procurou promover e condicionar a natureza humana a um determinado protótipo de comportamento “socialmente” adequado e aceitável (inócuo) e de como, invariavelmente em todos esses momentos, o outro lado desse “programa”, dessa engenharia, era o totalitarismo. Eu parto por isso do princípio que não devem valer de muito os nossos entusiasmos relativamente à natureza humana, relativamente a alguma bondade que nela se esconda – sem desprimor para as criaturas que são ainda capazes da surpresa, de executarem no meio de uma indiferença generalizada, um gesto, um acto de bondade – mas essa outra generalidade de nós mesmos (aonde me incluo!) o agregado indistinto de homens e de mulheres anónimos, não presta, não se recomenda neste estrito sentido: tanto é capaz de nos encher o coração, como a seguir partir qualquer outro, tanto é capaz de um apelo sereno, de um gesto de apaziguamento, como de irreflectidamente brutalizar, bestificar. Mas está bem assim. Nisso, apenas os santos se salvam e ainda bem! É essa amplitude, essa contingência de comportamento que nos faz e nos traz humanos, voluvelmente humanos, contraditoriamente humanos, violentamente humanos.

Tudo porque o Estado usa e constrói muitas das soluções ao nível do sistema penal com base nesse mesmo optimismo antropológico, que aqui de algum modo se pretende expor (e de algum modo, denunciar). Se não usasse desse mesmo optimismo relativamente ao Homem (a cada um de nós) não limitaria a moldura penal de muitos dos crimes que se praticam a um máximo absoluto de 25 anos. Porque o próprio sistema acredita que o Estado ao punir, deve simultaneamente cumprir uma função “ressocializadora” (e esse é o seu optimismo). Para tanto o sistema penal investe em soluções que “requalifiquem” o indivíduo, que o estruturem como um “novo ser”, um “novo homem” incapaz de reiterar nos comportamentos que o tornaram indesejável e o decretaram como “condenado”. Nesse seu optimismo, nesse seu INVESTIMENTO, o sistema penal prossegue e pratica um propósito de “engenharia social”, ainda que os seus fundamentos e a sua dimensão entre nós, seja ténue.

A questão que se coloca é que se o Estado usa de todo esse seu optimismo relativamente ao agressor/condenado e usa o seu sistema penal/prisional, para mais tarde ou mais cedo o devolver “requalificado” á comunidade, o que fica para a VÍTIMA? Que papel e que voz lhe deve ser reservado num sistema que por essência, investe quase exclusivamente no agressor e esquece por completo a vítima, nos seus traumas, nos seus medos, nas suas perguntas, nas suas fobias, no seu apaziguamento? A punição não apaga tudo…

Pois. O sistema penal é manco e toma partido por uma das partes… A mediação é todo o hemisfério que cumpre desbravar para que um novo equilíbrio seja reequacionado. Para que a vítima possa ter uma palavra a dizer…

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